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sexta-feira, 29 de maio de 2020

Dor de fome, Mariazinha e Coronavírus
Djalma Tuniz, scj
Um dia, ao terminar a missa dominical, saí da igreja com a sensação de dever cumprido. Os fiéis saíram satisfeitos, rezaram, cantaram, pediram a benção para mais uma semana e se despediram de mim com a alma mais leve. Foi muito boa a nossa missa, diziam alguns; boa semana, padre, fique com Deus; diziam outros. E eu, com o coração agradecido por mais um domingo celebrado, fui ao encontro da senhora mais idosa da comunidade, Mariazinha, que, assim como todos os domingos, esperava-me na porta da igreja, para tomarmos um café na padaria ao lado. Ela gostava de chegar à padaria e já pedir dois copos de café com leite e um quibe, que já havia encomendado no dia anterior e que o padeiro havia deixado reservado para mim. Era o nosso ritual dominical depois da missa. Só que naquele domingo aconteceu um fato que marcou para sempre a minha vida e fez com que eu refletisse as minhas ações cristãs, a minha vocação de padre, e a coerência entre fé e vida, que a Igreja Católica tanto prega e que Jesus já havia dito de maneira perfeita quando lhe perguntaram: “Mestre, qual é o maior de todos os mandamentos?” E Jesus respondeu: “Amar a Deus acima de todas as coisas, e amar o próximo como a ti mesmo”. Ao sair da igreja, Mariazinha já me esperava com seu guarda-chuva numa mão e uma sacola de plástico na outra, com o livro de orações, o rosário e uma pequena bolsa de dinheiro. De repente, aproximou uma figura esquelética e suja, um conhecido guardador de carros durante as missas e usuário de drogas nas horas vagas. Morador de rua, jovem, mas muito maltratado pela vida, olhou nos meus olhos e pediu: Padre, me dá um dinheiro para tomar um café? Eu, que já conhecia aquele homem e sabia das suas verdadeiras intenções, disse que não tinha dinheiro no bolso, estava saindo da missa e não carregava carteira comigo. Mas ele insistiu e eu, mais uma vez, neguei a ajuda. Do nada, ele se aproximou mais um pouco e disse com uma voz triste: Mas padre, fome dói. Nesse instante, Mariazinha, que até aquele momento era uma testemunha silenciosa desse episódio, deu-me o guarda-chuva para segurar, abriu a sacola de plástico, tirou a pequena bolsa de dinheiro, pegou a maior nota que tinha e deu ao homem. Guardou tudo de novo, pegou o guarda-chuva e me disse: Vamos para o nosso café. Não questionou, não julgou, não me deu lição de moral, não aconselhou o homem a gastar realmente o dinheiro com alimento, apenas ajudou uma pessoa que a fome doía em seu corpo e em sua alma. Fomos para a padaria, tomei meu café com leite, comi meu quibe, mas por dentro estava com vergonha do que tinha acontecido. Mariazinha nunca disse nada, também não precisava, pois na vida, conforme vamos adquirindo experiências, também descobrimos que atitudes sinceras falam mais alto do que as próprias palavras. Nesta semana, em que vivemos todos os dias o mesmo Domingo de Páscoa, pois celebramos em oito dias consecutivos o mesmo dia da Ressurreição do Senhor, pelo tamanho da importância desta festa cristã, lembrei-me desse fato. Talvez por hoje se completar um mês que eu e minha comunidade religiosa estamos confinados no Convento onde moramos, rezando pelos doentes, pelos profissionais da saúde, pelos lideres políticos para que estejam atentos ao povo, e pedindo a Deus misericórdia para com a humanidade, lembrei-me de Mariazinha e dessa história real que tivemos juntos. Ela faleceu já há alguns anos, foi embora com 103 anos de idade, num dia de muita chuva em São Luís do Maranhão. Não tinha ninguém da família, era só. Neta de escravos alforriados, sem dinheiro, sem bens, mas com um coração e uma fé que poucas pessoas neste mundo possuem. Ensinou-me que é bom rezar bonito, ter fé, ir à missa, mas melhor ainda é unir a oração com a ação. Ensinou ainda que diante de uma pessoa com dor de fome, não se julga, não se discute, não se demora, apenas ajude. Abra a sacola e tire a maior nota e pronto, não se fala mais nisso. Essa atitude não mudou o nosso itinerário e nem nos deixou sem o nosso café dominical na padaria. Apenas mudou o meu jeito de pensar como padre, fez de mim um cristão mais consciente das minhas responsabilidades, e me deu uma lição de vida e de fé que até hoje me emociona e me faz uma pessoa melhor. Nestes tempos de incertezas e medos, de reclusão e de cuidados, de presidentes e ministros da saúde, de coronavírus e cloroquina, de belas canções e orações a Deus, é preciso lembrar que, pode ser que ao nosso lado, já tenha alguém sentindo a dor da fome. E o que vamos fazer? Que lá do céu, Mariazinha interceda junto a Jesus por nós, que estamos cá na terra.