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terça-feira, 9 de junho de 2020

A MORTE NÃO RESPEITA CHUVA

Há alguns anos, eu, padre recém-ordenado, cheguei numa tarde de quarta-feira de cinzas à Ilha do Amor, São Luís do Maranhão. Lembro que a primeira coisa que senti foi um ar quente que grudou em meu corpo e me fez transpirar por três meses, sem parar. Sentia muito calor; o sol era forte e reinava durante o dia, mesmo quando chovia. À noite, a lua ocupava o seu lugar no céu, iluminando tudo e todos. Assim, aprendi a olhar para o céu com os olhos diferentes, mais atentos e admirados. Meu contato com a comunidade paroquial foi naquela mesma tarde. Missa de Cinzas, igreja cheia, e o padre, meu superior, deu-me a incumbência de proferir o sermão. Êita, pense num padre que tremia.... (como dizem as pessoas de lá). Assim foi. Fiz a homilia e olhei pela primeira vez nos olhos deles e eles nos meus. Abri meu coração, minha alma de padre novo e fui acolhido de maneira sincera. Logo vi que além do céu, o Maranhão tem um povo lindo, acolhedor, generoso, colorido pelas bandeiras de São João e embalado pelas matracas do bumba-meu-boi. Rapidamente fui apresentado à comunidade e conheci Eunice, que cuidava e morava com sua tia Alice, que logo me disse: “Muito prazer. Sou Alice Coelho Raposo, brasileira, solteira, de maior”. E deu uma gargalhada, sem deixar de faltar com respeito ao padre jovem que tentava entender a alma maranhense. Logo elas se tornaram meu porto seguro; meu socorro em dias de saudades de casa; minha alegria em dias de tristeza; meu amparo em dias de fraqueza na fé. Senti que Deus me presenteou pessoas que ocupava um espaço no meu coração e me acalmava quando a falta da família que tinha ficado em Parisi, insistia em nevoar meus olhos. Descobri logo que tia Alice iria completar 90 anos de idade, no final daquele ano. Imaginem, já com essa idade e ainda ia à missa diariamente, guardava na memória as histórias vividas na infância e contava com propriedade como cada um da família estava e quem já havia falecido. Aliás, uma das primeiras histórias que me contou foi sobre uma doença que teve na juventude e que a deixou tão debilitada que achou que não teria muito tempo neste mundo. Mandou providenciar uma fotográfica bonita, dessas de colocar na lápide do túmulo, para todos admirarem a sua beleza juvenil, e, acreditem, mandou fazer a sua mortalha, um vestido branco com uma faixa azul, em honra a Nossa Senhora de Lourdes. Era como queria ser enterrada, afinal sempre foi muito devota e boa cristã. Ri muito dessa história, e incrédulo, vi a fotografia e a mortalha, amarelada pelo tempo. Desgostosa com a fazenda, pois era assim que ela chamava o tecido, que deixara de ser branco, tia Alice pediu para fazer um outro, agora novo e sem a faixa azul. Queria nessa altura da vida honrar Nossa Senhora de Fátima, deixando Lourdes para segundo plano. E quando achava de fazer graça, olhava para mim e falava: “padre, tenho medo de quando ficar velha eu ficar caduca”. Eu ria, pois era mais fácil eu ficar velho primeiro que a tia Alice. E assim passaram os meus anos acompanhando os aniversários e as histórias daquela mulher. Eu mexia com ela, falava que estava com vontade de comer galinha cheia que só ela sabia fazer. Eunice já me olhava com cara de brava, sabia que iria sobrar para ela preparar essa iguaria, e no dia marcado lá estava eu comendo a galinha cheia, feita pela Eunice, e elogiando a tia Alice, que sem titubear agradecia com um sorriso como se fosse ela mesma a dona daquele feito. Presidi a missa de 100 anos da tia Alice, num sábado bonito, no Santuário da Conceição, e depois, já na casa dela, ainda dancei uma valsa, como costumávamos dançar sempre que a conversa ficava animada e ela me contava que, quando jovem, era pé-de-valsa e muito bonita, por isso cobiçada pelos rapazes da época. Mesmo assim resolveu ficar sozinha, ocupando-se da sua profissão de enfermeira, parteira e outras coisas que contava sempre com muitos detalhes. Fui embora do Maranhão e levei toda essa experiência comigo. Volto para matar a saudade sempre que dá. Mas, nesta semana, acordei com a notícia dada pela Eunice: “A tia Alice já está com o Pai”. Senti como se o meu coração tivesse parado, um zumbido no ouvido e a mente buscando memórias do nosso último encontro, em outubro do ano passado. Eu pedi para participar do sepultamento, disse que tia Alice merecia uma benção nesse momento. Chovia em São Luís. Como acontece nesse tempo de coronavírus, não teve velório. No cemitério apenas Eunice, suas irmãs e alguns sobrinhos, poucas pessoas, pois está proibido aglomerações. E eu esperando no meu escritório, com a estola na mão. De repente o celular tocou, abri o vídeo e vi Eunice de máscara com os olhos tristes. Ela virou o celular para frente e vi o caixão lacrado da tia Alice. O céu não tinha sol. Coloquei a estola e fiz a oração pedindo a Deus que abra a porta do Paraíso a ela. Não aguentei, a chuva veio para os meus olhos e caíram em forma de lágrimas. Não era tristeza, era saudade. Rezamos juntos. Deliguei o celular e fiquei sentado, olhando para a parede e imaginando, com detalhes, o sepultamento simples e rápido que estava acontecendo. Confesso a você, nunca imaginei que iria ser assim, tão simples e tão bonito, como foi os 101 anos de vida da tia Alice. E rezei baixinho, mais uma vez: Que as almas dos fiéis defuntos, pela misericórdia de Deus, descansem em paz!